1. A cintura da curva
há
uma rua
inteira
den
tro de
mim.
cada esquina por que passei,
há uma marca,
um resto,
um rasto
cada curva onde dobrei,
uma lágrima
estancada no
poço dos olhos
cada sol que aqui já se pôs,
uma gaveta no quarto escuro
da lembrança
há
uma rua
inteira
den
tro de
mim
e muita
curva
ainda
me
resta do
brar.
2. Pano úmido
a pele que habitas é
nua de vergonhas, é
assim um pano úmido
de marcas de passados
é também um cobertor,
um amparo de silêncio —
quando chora, adoece, e
quando ri, se ilumina
a pele que habitas tem
no tato esses teus mapas:
e lhe decifra o dedo certo e
lhe rasga os tantos tapas
Nesse poeminha de 2021, a foto acima me inspirou a pele. A foto é minha, e nela se vê o meu avô: pioneiro de Tangará, homem que foi mocinho e vilão da própria história. Foi, porque hoje não é mais: mudou-se daqui em 2022 e, algum tempo antes disso, o alzheimer já o tinha acometido.
3. As rimas do fim da estrada
um dia estive aqui
andando sem parar,
dobrando em cada esquina
com pressa de chegar
notável que o espelho
vem agora reclamar
que aqueles passos de antes
não marcam meu lugar
e a cova macia chega,
e as ruas se vêm findar,
a pressa abanca e espera —
não marca o meu lugar
um dia estive jovem,
só velho o meu pensar,
que hoje o que me resta,
a ausência de presença,
não marca o meu lugar
4. Um punhado de grãos
a memória é
o gume da lâmina:
o corte que assenta repentino
na ingenuidade do peito
não se repara
tampouco se estanca
ainda bem lembro,
no fresco da lembrança,
aquele nosso sorriso
que só contigo eu
sabia dar gaitado
pois cá me deixo sentado
um pé aqui,
outro no ano retrasado,
recolhendo no
estéril ventre do tempo
os grãos que plantei,
os não germinados
Nesse poeminha, o sorriso que saudei foi o da minha avó: preta, religiosa, submissa ao marido e a Deus e pioneira em Mato Grosso e Rondônia. Chegou em Tangará (MT) em 64 e, em Itapuã (RO), em 81. Viu de perto a fundação dessas cidades. Teve muita história, algumas eu ouvi dela própria. Mudou-se daqui em 2016.
5. Passa pano
Eis a nossa velha novidade entalada —
tanta gente impotente que não cuida mais do rabo!
Arma a boca de um tal visco e
passa o risco nas verdades,
brada embalde um estandarte que a ninguém causa mais nada.
É peleja de gogós a luta ardente em nosso tempo:
duas gralhas são as pontas da justiça equilibrada.
Julga a torto e a direito,
vai cancelando o mundo
que descobre o chão de vidro de uma gente envesgalhada.
6. O que a gente até esquece de tanto que a gente vê
Ninguém lembra
Porque a memória é curta
Que nem aquela vez que fui no mercado
E me esqueci o que tinha ido lá fazer.
A memória é curta — bem curta!
Que nem o pau daquele cara jeca
Que a gente ainda agora lembra em HD.
Mas a memória é curta
E não há quem conteste a sua curteza:
A gente antes lembra do que quer
Que do que precisa
E segue em meio a essa fauna indecisa
Esbravejando, marchando, cobrando,
Esquecendo, esquecida.
Mas a memória é curta
E, em tempo, é também fraca —
Bem mais que a carne do lombo
Do cidadão que esturrica.
7. Spoiler
I
Estive hoje no cemitério
Contando aniversários de caveira
Nas cruzes do esquecimento.
Achei tanta gente morta jovem
Que, se viva, já teria cinquenta.
Tanta gente que atravessou o século,
Morreu com a História na soleira da boca.
Mas eu nem lá queria ter chegado —
Só fui passando, topei nas saudades.
E coube a mim depois pensar
Que o spoiler máximo da vida
É saber justo onde vou acabar,
Apesar do mistério que se faz sobre as curvas e o caminho.
II
No cemitério foi que revi
Quem já não via desde o ano passado
Feito grão não germinado
E tropecei noutra máxima da ida:
É diante da morte que se pensa na vida.
E se hoje penso cá na minha
Não deixa de ser influência,
Embora também desânimo de perna,
Dessa cova que se me encaminha
A passos largos de apressado.
8. Uma vida
A força, um vigor da necessidade,
Nunca esteve de mim tão amiga
A pandemia me atingiu
Logo bem quando nasci
Levou de mim quem quis levar
E nem olhou o meu soluçar
Lá no canto da indiferença
Fui, sim, jovem e promissor
Fui bichona e fui bom aluno
Pisei pedra e paradigma
E opiniões demais considerei.
Houve um tanto de caminhos
Dos quais sempre me esgueirei.
E cá diante do passado
Eu flagro as rugas em uníssono
— Você fez sempre tudo errado?
A esperança que então resta
Não é mais exclusiva de ser minha:
É um berro coletivo
Das funduras lá das juntas,
Um anseio de utopia
Que alimenta a força bruta
Da razão que engatinha
9. Linha vazia
O que seria
do resto de mim
sem a poesia devassa
das nuas paisagens?
O que me
restaria para olhar
para entender, estudar,
assistir vermelhar
lá além dos telhados?
Para lá do horizonte,
da copa dos bosques,
do floreio da luz,
do cimo do céu?
Que nada eu seria
sem o consolo
desse ócio,
a mão da solidão,
o caridoso silêncio
Seria não mais que impotente
engano recente,
a caneta dormente
na mão dum poeta
10. Se eu pudesse poder
se pudesse
eu diria tantas coisas mais
às pessoas do passado,
às matizes das paisagens que já vi,
àquelas ruas que, debalde, percorri
se pudesse
eu não daria chance ao mundo, não.
eu valorizaria o suor
mais que o sangue e o amor,
mais que este mundo imundo
da cor da sua ferrugem social.
se pudesse
eu morreria bem no fundo —
no
fundo
do
meu
mundo
sob
medida
legado
memória
miséria
bem no fundo,
só.
Fotografias, ilustração e poemas de Julian de Sousa, acadêmico da 6ª fase de jornalismo na Unemat tangaraense.
Para mais conteúdo jornalístico e literário, assine a newsletter com o seu e-mail acadêmico, ou siga o canal do Fuzuê no WhatsApp.
Eu li fii muito bom