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O causo

1

Bahia, anos 20, numa próspera cidade de porto...

No cais, quando cai do céu o primeiro raio da manhã, três figuras distintas se cruzam por acaso e estendem o encontro em saudosos cumprimentos. Como vai, quanto tempo, será que hoje chove. Vão tropeçando nesses assuntos de homem, na espera do velho Amâncio vir abrir a sua barraca de peixe, e degustando desde cedo o assunto novo daqueles últimos dias.


— E digo e repito aos senhores: isto não hei de tolerar mais — ruge o coronel Sirovaldo, homem já envergado da idade embora de respeitada pioneirice, a catadura vincada e o indicador em riste. — É uma safadeza, e descabida! E nossas mulheres? E nossas crianças? Como ficam?


— Tou com o senhor, coronel! Tou com o senhor! — Cleônidas se manifesta. Este é um cabra baixote e engraçado se comparado à protuberância do primeiro. Advogado, usa bigode, paletó, fedora e tem uns jeitos muito apurados de gesticular quando fala. Não opina, porém: toma carona nas opiniões já prontas. Justo por isto, a sua companhia é sempre das mais requisitadas.


— A gente precisa é juntar uns cabras, pressionar o prefeito Fabiano, mostrar tutano! — A sugestão parte do coronel. — Ele tem de dar um sumiço nesse aí. Um frouxo desses vir mexer na política da gente? Não tolero! Sempre começa assim. Primeiro vem um, depois aparece outro. Quando vê que não, se aquietam, vão ficando por aqui mesmo… Eu é que não quero meus meninos andando que nem os xibungos do Lady Creuza!


— É o diabo, senhor coronel. Ele tem é o diabo no couro. Ele e o prefeito. — Agora é o sargento Silva quem pipila. Sem grandes adjetivos para esse além do jeitão de pedra.


— Pode ter é o que desgrama for. Com ou sem prefeito, eu expulso esse cabra da minha cidade ou não me chamo mais coronel Sirovaldo das Antas!


Todos aquiescem.


Nesse instante, lá do mar desponta uma figura humana. É o Amâncio vindo abrir a sua banca. Vem gingando, equilibrando na cabeça um cesto de dourados e tilápias espelhantes como lâminas à luz da manhã — alguns ainda tão frescos que se debatem, agitadiços, nos primeiros sopros de morte.


Como de costume, cada um garante a sua remessa de pescado e deixa o resto dos causos por esticar numa próxima ocasião. Se despedem, pegam o rumo: o coronel, com a bengala de respaldo, vai claudicando até sumir da vista; o advogado, num passinho ligeiro, atalha pelas ruas do morro do Capa Negro, vai cumprimentando as donas nas janelas, nas calçadas, sempre risonho, sempre altaneiro; e o sargento, homem empedernido como é, evita ao máximo as pessoas. Do trio, é o único solteiro.


O cabra de quem ainda agorinha falavam é um fidalgo vindo do Rio, um tal de Nandinho Soncini. Tem nem um mês completo de chegado. Moço literato, logo se nota, como também se nota certa vocação para as complicações da política. Com uns poucos dias na cidade, já corria o falatório de que pretendia concorrer à vereança. Que tivera pai diplomata, e que o atual prefeito fora muito amigo desse seu pai, por isso o apoio ao rapaz para a câmara. Isso causou um burburinho imediato entre o baronato, pois Nandinho não fez essa mossa toda: era um cabra muito requintado para o mato. Adamado no jeito, fala macia, andar jeitoso demais. Até caxumba descida diziam que tinha. E foi correndo assim, de janela em janela, de boca em boca, assunto sempre muito interessante, que a sua fama se fez. Nem no cabaré já fora visto. Deve que não gostava da coisa. E se não passava firmeza, não servia nem pra vereança nem pra nada.


— Deve que tá lá de tocaia com o prefeito. Só bota a fuça no sol para ir à prefeitura, o cabra.


— Suspeito, coronel. Um moço jovem assim nem aproveitar o Lady Creuza...


— Ai de nossos filhos, marido. Ai de nossos filhos.

 

2


É noite. Acima, salpicos de luz enfeitam o céu da Bahia; abaixo, o Lady Creuza ferve, em polvorosa. É gente que entra, que sai, outros que sequer se decidem, ainda estacados na entrada. Mas é uma vez dentro que os queixos caem: é luz, é música, é calor e nudez sob medida. O paraíso do adúltero e a perdição do celibatário.


"Carnaval" (1928), de Di Cavalcanti.

Na rua, o coronel Sirovaldo vem lá coxeando todo impaciente. Só toma fôlego quando alcança a soleira do cabaré. De fora, avista o advogado dentro, metido no meio do cio das putas, o sorriso ladino e os olhos vasculhando os decotes tantos e vários, que mais se parece um menino diante da loja de doces que não sabe qual provar primeiro. O coronel afinal também entra. Entra já rindo, já gargalhando.


Logo mais, quem também chega é o sargento Silva. Reservado, a cara desconsertada, o sorrisinho desbotado. Pede uma garrafa, toma um assento e fica por ali mesmo, bebericando, bisbilhotando. Um gole e lá vai o Cleônidas subindo a escadaria com uma puta sob cada asa. Outro gole: a noite está só no começo.


Entrementes, longe dali, Nandinho encara o vazio da rua. O seu relógio diz que é ainda cedo, mas, pelo alarido abafado da noite, àquela hora uma metade da cidade já lota o Lady Creuza e a outra metade está em casa. Talvez, até como ele: encarando vazios. Ou ainda (e, aqui, pensa que mais provavelmente) falando sobre o cabra adamado do Rio de Janeiro que quer entrar para a câmara.


Nandinho matuta um tempo. É na verdade um homem calmo, de mais contemplação que fala, considerando o que pede cada momento, mas sabe que não vai ser deixado em paz, que precisa agir. Depois, encaixa o chapéu na cabeça e sai com o passo ligeiro pela noite. Vai ao Lady Creuza. Vai dar àquela gente um pouco do que eles querem. No caminho, passa por uma velha rameira debruçada no parapeito duma janela. Ela tem um cigarro no beiço empastado, o decote generoso e aquele jeito malandro de quem já viveu o bastante para saber todas as coisas.


— Ei, moço! Moço! — Ela o faz parar. — Tu sabe que mangam de tu por aí, não sabe, moço?


— É o quê?


— Tu sabe, não sabe?


— Sei sim, senhora — responde ele, muito grave. — E sei também quem diz: é o coronel Sirovaldo, não é? Pois é com ele que vou ter agora! Espere só!


Mas antes que Nandinho retome o passo despeitado, a velha lhe conta um segredo. A cara abobalhada que ele faz depois de ouvir é que nem a de qualquer outro quando afinal descobre a peça final de um quebra-cabeça. Cara de deslumbramento. Acima, a noite estrelada está perfeita. Ele caminha agora mais decidido que antes. A velha, lá da sua janela, pitando e bafejando, ri essa risada malandra enquanto Nandinho se afasta. Risada de quem sabe das coisas.


É um pouco mais tarde que uma senhora vai atender quem bate à sua porta. Mulher asseada, bem apresentada, não só não espera receber visita àquela hora como se espanta ao saber quem é o visitante. Ela é, a propósito, a esposa do coronel Sirovaldo; o visitante, com o panamá contra o peito e um sorriso respeitoso, claro, é Nandinho. Trocam algumas palavras que não importa sabermos nessa leitura, embora não nos custe saber que, não sem antes impor uma alguma relutância, a mulher afinal fecha a porta e segue o nosso rapaz.


Não demoram a chegar no Lady Creuza. Vão entrando assim ocultos na fervura do cio alheio, pegam subindo pela escadaria. Num lance de segundo, é Silva quem, ao acaso, ali entre um e outro golinho, lhes passa as vistas lá do seu canto.


— Santo Deus! Santo Deus!


Seguem decididos escadaria acima onde defrontam o quarto com o número 6 na porta — justo como dissera a rameira da janela. E tão logo Nandinho a escancara, a senhora em sua companhia dá logo um grito e cobre o rosto das mãos. É horrendo. No quarto, sobre a cama, todos estão nus ― o coronel por baixo, o peixeiro pelo meio e o advogado em cima ― numa cópula angustiosa, suada e arfante, sob o sigilo do alarido vindo do salão.


Foi esse o primeiro causo de divórcio por sodomia que se ouviu falar na Bahia, por muito tempo um saboroso assunto de boca e de ouvido.

 

Julian de Sousa é acadêmico da 5ª fase de jornalismo na Unemat tangaraense.

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