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Os passantes

Na Avenida Brasil, escorre gente que nem lama nas canaletas em dia de chuvarada. Entram nas lojas, saem, tomam os ônibus, descem, esperam no ponto, passam de carro, driblam o capô dos carros parados no semáforo. A cidade corre porque a cidade é apurada demais para perceber um olhar modesto no panorama poluído.


Mas a dona dele está lá, a bunda ossuda pregada num banco de cimento na beira da calçada, na Praça da Bíblia, frente à paróquia, o olhar viageiro passeando pela compleição alheia. Olhar doído, mas retido, que ninguém pode ao certo desvendar.


Maria é como se chama. Outra Maria, porque, que nem ela, ainda têm muitas.


"A mendiga", de Almeida Júnior. Óleo sobre tela, 1899.

A sua fisionomia é até passível de se imaginar, mas deixo mais maleável a sua visualização se digo que não é uma mulher tristemente comum sentada num banco de praça, assim, por esporte ou por espera. Comum, não. É deplorável. Uma mulher comum mexe no celular em vez de caçar na cara dos outros um sedativo efêmero, uma distração em que concentrar a sua solidão. Uma mulher comum, sobretudo, se veste tal qual se pode imaginar uma dessa condição: no pé, ou sapatilha ou tênis; uma blusinha de manga curta porque o calor está sempre matando; o ombro dentro da alça duma bolsa; o cabelo preso num coque apertado; calça jeans embaixo. Isso é comum. Maria usa trapos. Os cabelos, como repas, como sapê, se desmancham num frizz desleixado que o vento escangalha. A cara tem as rugas todas muito sinceras, os dentes faltando, o beiço murcho da idade. Na pele, uma camisa de candidato com as axilas escuras, uma saia rodada cobrindo as ancas, Havaianas trocadas nos pés. Leva uma sacola consigo pois, nela, cabe tudo o que tem — e essa é Maria.


Como ela, outros da sua mesma espécie também erram pela praça. Todos homens e sempre em grupos sardônicos. Se vem alguém passando, já abordam o passante, jogam um migué, um enredo triste para descolar uma graninha. Só que a alma do passante, que já anda desconfiada, sempre cheia de cautela, e, ultimamente, sempre desprovida, não cai fácil em migué de mendigo cambaleante. Nem sempre bêbado tem cara, mas cheiro tem de sobra — e é por isso que quase nunca descolam uma graninha.


Diferente deles, Maria não pede nem tem amigas com que se ajuntar para abordar pessoas, esmolar que lhe paguem um lanche, um pastel com Fanta. Para homem, até isso é mais fácil. Homem é descarado: já esperam isso dele. Maria, mulher, senta comportada e espera.


Uma vez, ela parou na frente da Caixa Econômica, a sua sacola com uns sabonetes que tinha juntado um tempo para comprar. Quem passava, fosse chegando ou indo embora, ela esticava um sabonete baratinho, a cinco reais, mais para ajudar. Voltou de noite para a praça com todos os sabonetes na sacola. No outro dia, lá se via ela de novo, escorada na porta da Caixa, oferecendo sabonete aos passantes, custava só cinco reais. Tinha quem recusava com educação, com um sorrisinho sem graça de quem era pego sem poder ajudar, tinha quem fazia que ela era invisível e passava reto, tinha quem se zangava e saía fora resmungando. Numa dessas, ganhou até sobrenome — chamaram-na de fedida. Isso que foi só o que ela ouviu. Mas nunca respondia ninguém, só ficava olhando com aquela calma latejante nos olhos de vitrais rachados. Se cagava, não tinha nem com o que limpar o cu, mas o que notaram é que era fedida.


Essa é a Maria.


De rabo pregado no banco da praça, faz um tempo que se detém olhando um pivetinho lambendo uma casquinha de sorvete. Garotinho bonito mesmo, branquinho, o bracinho erguido segurando na mão da mãe. Os dois se entreolham — Maria com o olhar dolorido de muita estrada, e o menino com o seu indiferente de criança. Não sorriem um para o outro nem nada: ficam só no olhar. A indiferença do menino então dá lugar a uma certa timidez, uma vez que ele se vira para a mãe, constrangido, meio encolhido, como se escondesse o sorvete do olhar pedinte da mendiga. Ainda intrigado, lança outra espiadinha para ver se ela continua o encarando. Continua.


Nesse dia, sai na Record, no programa do Fran, uma matéria espetacular: idosa ataca garotinho e tudo termina em sangue! A polícia militar se demora vestindo a farda e os passantes é que fazem justiça pela criança. No susto — contam na TV depois —, a velha corre para o meio da avenida com o sinal aberto.


Agora, todos passam olhando para ela estatelada no asfalto. Alguns param, cercam o cadáver com olhos de estardalhaço e aborrecimento. Finalmente, Maria é mais interessante. E ela sabe — muito embora saber não lhe cause nada, nem espanto nem emoção — que essa curiosidade, essa compaixão, esses comentários de repentina pena, ela sabe que terão fim efêmero. Amanhã, a matéria espetacular da TV já será outra. E ela vai andando assim mesmo pela Avenida Brasil, um pouco confusa e o outro pouco rindo. A avenida limpinha dos carros, não precisa mais nem desviar. Muito depois, a sirene da ambulância entoa a trilha sonora da sua vida. É o SAMU chegando.

 

Julian de Sousa é acadêmico da 5ª fase de jornalismo na Unemat tangaraense.

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