Isso aconteceu ali pelas voltas de 2009. Comentava-se muito sobre o senhor Michael Jackson, a sua notícia desastrosa ainda escorria pelos ralos do país.
― Esses rico ― abanavam as cabeças dizendo à TV como quem dizia a uma comadre ― só sabe meter droga no cu...
O que conto daqui para baixo também deu o que falar, mas não foi caso de imprensa. Morreu na memória fraca do povo.
Na casa do Wisley, lá bem nos fundos, na divisa com o quintal do capitão Dário ― policial aposentado e personalidade célebre nos dias de natal ―, crescia um abieiro disputadíssimo em época de fruta. Vinha uma molecada vadia de todo canto e, feito bando de curicas, lotava o pé de algazarra. Algazarra essa feliz, de disputa, de riso de graça. Os garotos se sobressaíam, trepavam mais ligeiro, os mais velhos sempre superando os mais novinhos; e mesmo algumas meninas, mais atrevidas e corajosas, se metiam lá junto dos moleques na aventura de escalar o abieiro, de morder um dourado abiu, de ter a boca pastosa e grudenta do seu látex.
Era época ruidosa essa, os cachos pendendo sempre pelas beiradas, nos galhos mais finos, mais perigosos. Fato que dava também saboroso assunto para os comentários da dona Joana, noveleira catedrática, sempre de butuca na vida alheia, um olho no ponto de crochê, outro janela afora.
― Esses trem ― foi ela quem disse, uma vez ― cai lá de cima e se estropia embaixo, depois a mãe vem chorar...
Pois foi lá no cimo do abieiro que, um dia, no mais alto galho, o próprio Wisley descobriu a vista que dava para a cidade toda: lá estava o teto fusco do mercado 3 Irmãs e a dona Joana debruçada na janela, esticando o pescoço à caça de um mexerico; e mais a velha rodoviária, o tráfego dos Gontijos e Cascavéis, além das pessoas dobrando as esquinas, se metendo pelos portões de casa, recebendo e sendo recebidas pelos cães com latidos risonhos, latidos de saudade.
As lonjuras que se podia apreciar, as aragens que se ouvia sussurrar. O garoto sentava num galho em perfeita forma de Y e descansava a vista no panorama, a boca grudenta da nódoa dos abis, uns tantos já metidos nos bolsos do calção. E então sentia um fiozinho de vida, os problemas pequeninos vistos do alto.
Trepava para lá ao menos uma vez no dia ― isso, claro, logo que a gurizada largava da árvore. E do alto via o sol descer num bocejo sonolento, aberto num leque de tons de rubro e laranja, prenúncio doutra noite. Wisley descia também, logo a mãe o chamava. Por tempos foi assim, até que o desinteresse veio. As idas ao topo do abieiro diminuíram, já não guardava mais curiosidades, enjoava daquela vista de sempre.
Mesmo no inverno ― que em Rondônia, por sinal, persiste demasiado calor ―, quando enverdecia todo o abieiro, já nu das frutas e da garotada, recebia duns poucos umas visitas casuais. Mais por ginástica e excesso de energia que por fome, dessa vez. Wisley também retornava ao topo do seu observatório, participava dumas risadas entre os que era mais chegado, gastava as horas da infância direito. Dava o outono, voltava a algazarra, a estripulia, a árvore carregadinha de fruta e daquela meninada vadia.
Uma vez, duma traquinagem inocente dessas, doutra caça ao fruto do abieiro, desabou da árvore um dos seus escaladores. Cresceu nos demais uns gritos e agitações para logo baixar um silêncio amargo. Entenderam aquela morte, o fim daquele ciclozinho de pouca estrada que até muito poderia ter ainda, morto, contorcido no chão, o seu último amparo.
Logo chegaram os adultos com o choque na estampa dos olhos, chorando a perda, puxando orelhas pueris, mandando ir para casa, reprimindo a infância que restava aos sobreviventes, telefonando à polícia, reclamando da árvore.
A árvore...
Que teve com isso a árvore? Ora, se não... Por sua desleixada existência, ia agora uma vida de mais importância. Por seu desavergonhado crescimento, seu dourado e diabólico fruto, agora uma mãe se debruçava aos prantos apertando o cadaverinho do filho, raquítico e mal desenvolto, nos braços gordos. Por culpa sua, lágrimas de areia.
Derrubaram a criminosa. Acabava o olhar panorâmico de Wisley, a farra da pirralhada, os amarelos abis que faziam grudar os beiços: expiraram ambos os pés. Até o capitão Dário ― pobre dele, que a árvore ficava nos seus domínios ― se complicou por abrigar uma celerada, uma foragida. A sentença foi aplicada a motosserra. Morreu o abieiro, morreu também aquela estripulia contente dos dias, devolvendo às tardes a mudez lenta que até hoje compõem lá os cenários.
Da sua janela, o olho parado no toco cerrado do abieiro, foi a dona Joana quem acudiu a memória do falecidozinho:
― Passa a vida toda largado, e depois que se estropia no chão é que tem mãe.
E sumiu para dentro. A novela das seis tinha começado.
Julian de Sousa é acadêmico da 5ª fase de jornalismo na Unemat tangaraense.
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