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Rio Preto

Atualizado: 9 de jul. de 2023

Já tinha nascido morto. A sua cabecinha perfeita agora cabia também perfeitamente na palma da mão do pai, Josonias, que a sustentava diante da cara ruim de peão mateiro, sem deixar de pensar um só momento que o primeiro filho junto da mulher — que chorava na cama esse choro que é mais de raiva e de impotência que de tristeza — era o que Deus agora lhe tirava sem nenhum motivo. A dona Joana, sua mãe, que tinha feito o parto, erguia as mãos ainda ensanguentadas para o céu lá fora, pedindo a Ele misericórdia.


Embrulharam o natimorto numa caixa de sapato, e o enterraram no mesmo dia, na beira do rio. Era janeiro de 1981.


Dois dias depois, quando Jonatas chegou de Itapuã, não perguntou do neto. Foi a dona Joana que lhe falou — já tinha nascido morto. Ele mesmo não fez questão, nunca dirigiu qualquer palavra de pesar ao filho enlutado. Tratou da coisa com a indiferença que já era esperada dele.


A verdade é que Jonatas Lopes da Silva tinha o velho hábito dos eremitas do país: era um homem grosso que só se dava com a grosseria da juquira. Comprou as terras do saudoso Caputo, longe uns trinta quilômetros de Itapuã do Oeste, pegando pela Linha Azul 2, ergueu uma casinha para ele, a mulher e os filhos num descampadão no meio do pasto, na beira do rio Preto, e lá criava gado de leite e de corte. Com a Joana teve cinco filhos; quatro já tinham debandado para suas vidas particulares.


Josonias, o caçula, era o que tinha ficado. Molecão de vinte e um que ainda ajudava o pai na derrubada, erguia cerca de arame, amansava cavalo e boi, e marcava as novilhas. Vaqueiro de tino, fazia de tudo. Ganho o trocado, ia gastar na gandaia de Itapuã. Foi assim que embuchou uma meninona nova que nem ele, a Quele.


Ela ficou uma fera quando o Nias chegou contando que o pai dele nem quis saber o que tinha sucedido com a criança. Tinha ódio do velho. Reclamava que a tratava mal, que se sentia humilhada, que, ali, só a sogra a tratava bem. Mas o Nias mesmo não ficou surpreso. Ele achava que tinham coisas que eram como tinham que ser. Viu a mãe cozinhando em fogareiro de barro e lavando de cócoras, debruçada no jirau na beira do rio, a vida toda. Nunca teve máquina, fogão, essas coisas. O pai falava que, no mato, não precisava de luxo.


Em todos aqueles anos, tinha visto nele só uma paixão: a Pantera, uma cadelona grande, roliça, o pelo preto luminoso que nem de gato, que ele tratava que nem gente. Quanta onça o Nias já tinha ouvido esturrando a poucos metros de distância junto do pai e daquela cadela latindo, sozinhos, enfiados no breu da juquira, só com a proteção do facão na cinta e do Pai do céu. Em casa, toda vez que o velho acabava de almoçar, juntava os restos numa vasilha e, quando a Pantera vinha para o seu lado abanando o rabo, ele lambuzava o dedo na comida e o limpava no lombo dela. Dizia que era o segredo dela ser gorda e bonita que nem era.


Entrou na Bandeirantes velha e se picou para Itapuã um dia antes do neto nascer morto. A Quele ficava repetindo isso o tempo todo, que o filho só tinha morrido por não ter nascido numa clínica, pela mão dum médico. Tinha um ódio cego do velho. Então, chorava. O Nias achava que ela estava certa. Ouvia o soluço dela atravessando a noite, e pensava que o pai preferia a cadela ao neto. Foi na cidade, comprou vacina para raiva, trouxe para a cadela. Lotou a carroceria de mistura para o mês, quirera para os frangos, um saco de ração da boa para a cadela. Sentava no degrau da porta e ficava alisando o couro dela, chamando de minha negona.


Foi a primeira que o Nias fez sumir. Voltou já perto de amanhecer para a sua cabana, deitou do lado da mulher e dormiu tranquilo. Nunca mais ninguém viu a Pantera.


Na sua saudade, Jonatas justificava o sumiço dizendo que tinha sido pega pela pintada. E ao passo que ele se ressentiu, a Quele reacendeu. Com os dias, parou de chorar. Agora dissimulava um começo de sorriso toda vez que pensava na cadela; acreditava que era Ele punindo o velho. Ficava repetindo para o Nias que ele merecia coisa pior por não a ter levado à cidade, para o neto nascer na mão dum médico, num lugar certo. Mas chorar, já não chorava mais.


Depois disso, toda vez que o pai entrava na Toyota para ir à Itapuã, Nias ia junto. Queria estar perto, tinha uma súbita obsessão em saber o quanto a falta e a dúvida pelo paradeiro da cadela o atingiam. Além disso, precisava saber se o pai tinha o remorso natural em ter o filho bem do lado sabendo o que tinha feito ao neto. Esperava ver nele um arrependimento, uma explicação que saciasse a sua busca por uma. Às vezes, na conversa trivial dos dois, Nias chegava a cutucar o velho no ego, sugeria que ele pegasse outra cadela para criar. Jonatas virava a cara do volante para a paisagem correndo na sua janela lateral, cuspia lá fora.


Foi mais de mês depois, na primeira vez que se picaram juntos pela juquira para caçar sem a Pantera correndo e latindo do lado da égua do dono, que o Nias achou o que procurava: no breu absoluto da mata, Jonatas começou a assobiar. Estava chamando a cadela. Ainda tinha esperança. E ficou por uma boa meia hora assim, assobiando para o ermo, o filho em silêncio, trotando mais atrás, os dois suspensos no éter da dúvida.


Ali foi que calou a obsessão que crescia no peito. Quando o Nias voltou para casa de manhã, voltou sozinho, deitou do lado da mulher e dormiu tranquilo.


A mãe que veio tirá-lo do sono, interrogá-lo, passando a mão no peito, falando duma aflição, mas o filho não sabia de nada. O pai tinha mandado ele voltar e ficou sozinho, assobiando atrás da Pantera. Era turrão, mas também era cria do mato. Tinha levado a espingarda na sela, disse que atirava para o céu se precisasse. E, naquele dia todo, a dona Joana ficou esticando a orelha para o rumo da mata esperando o tiro do marido. Foi dormir engasturada, um peso no coração. Dobrou o joelho no chão de barro e orou por uma hora inteira pedindo o marido de volta a Ele. Passou a madrugada esperando o tiro que não veio, e estendeu a espera ainda pelos próximos dois dias.


No terceiro, urubus amanheceram circulando a crista duma castanheira lá distante, no pasto. A velha fez o Nias arrear uma égua, montou na bicha e foi com ele naquele rumo. Era a carcaça duma novilha que a pintada tinha largado. A dona Joana caiu de joelhos, as mãos juntas erguidas para o céu, e o Nias ficou pensando que, tal como o pai com a cadela, ela também tinha esperança. Agora, até ele também tinha.


À noite, na cama, a Quele comentou que era estranho o velho já ir para o quinto dia sem dar sinal de vida. Que se fosse onça, os urubus já tinham denunciado a carniça. Nias achava, embora achasse tanto que já tomava como certeza, que ela apenas dividia o prazer da hipótese do velho morto com o remorso da sogra viúva, sofrendo. Mas então ela virou-se para o marido, agarrou o rosto dele entre as mãos, disse que tinha ouvido a Pantera latindo a madrugada toda naquela noite em que foram caçar. E enquanto ela o enchia com perguntas, vasculhando mais ainda a hipótese do encoberto, ele a mirava com uma calma inexpressiva que era seu costume.


É impossível que se olhe para o homem e o leia por baixo da pele — a semiologia fica sempre limitada à interpretação distraída de quem olha. O Nias era um dos impossíveis. Quem o via, pouca impressão guardava. Para um rapagão da sua idade, e sendo bonito como era, era quieto demais. Mais modesto que o pai, falava pouco e, quando falava, o fazia baixo. Não alterava a voz, não gritava. Todos os seus movimentos e expressões corporais eram ditadas pela calma simples e despretensiosa, que já era característica firmada sua. Quando a mãe falava dele para alguém, ressaltava isso. Nias era manso, era na dele. Era impercebível. A própria mulher só o enxergava assim. Apesar das suas reclamações constantes, nunca despertou no marido aquela petulância orgulhosa dos homens daquele tempo, que era sair do que era dos pais e ir se virar sozinho no que fosse seu. A Quele chegava a sonhar com o dia em que estariam só os dois na cidade, na sua casinha, na sua vida. Só que o Nias era manso demais. Nunca desconfiaria dele se ele próprio não tivesse achado bom narrar para ela os pormenores do parricídio. A forma como usou do facão para, primeiro, calar a goela do velho, e, depois, para desmembrá-lo no canivete, como era acostumado a fazer com o gado de abate: decepava fora primeiro a cabeça, e então repetia nos ombros e nas coxas. Num talho — ele demonstrava, arrastando o dedo na barriga dela —, rasgou o tronco do peito ao pé da virilha. As tripas lotadas de merda, as esvaziou na água do rio. O coração, o lavou e o meteu no bolso. E tudo o que fez, o fez na presença silenciosa dos jacarés-de-papo-amarelo, inquilinos do lodo naquelas margens soturnas, e únicas testemunhas da cena. Então, membro por membro, o filho foi atirando o pai lá no meio do rio, ouvindo os répteis deslizando para a correnteza e se estrebuchando na disputa da carne, decretando que aquelas águas escuras, onde antes tinha enterrado a cadela, fossem também o caixão do seu dono.

Imagem: André Marques de Almeida.

Terminado o relato, a mulher abanou a cabeça devagar — muito devagar —, negando aquela história. Nias alcançou a sacola preta pendurada na parede, e a jogou no colo da Quele. Era o coração putrefato, pulsante do seu sogro.


Quando ela disparou correndo no ermo da madrugada, aos berros, que o marido estava doido, que era um assassino, ele a calou com golpes de canivete. Juntou ela nos braços, ficou ouvindo a vida ir vazando dos seus pulmões perfurados, e seu último suspiro foi um segredo: ela só queria ir embora dali. E mesmo que agora tivesse morta a grande razão das suas últimas ações desenfreadas — aquela que não perdeu com o natimorto, mas que ficou para relembrá-lo todo dia da perda —, Nias não chorou. Todas as vezes em que se previu naquela situação, pensou que, pelo menos, choraria quando chegasse a hora de perder alguém a quem amasse. Olhando-a na cara endurecida de olhos abertos ao máximo, ficou pensando se, na verdade, a amou algum dia…


Arrastou o cadáver para a beira do rio e voltou para buscar a mãe. Foi a passos pesados subindo a ribanceira escura, não percebeu a tempo que ela já estava ali. Mulher religiosa, antecipada pelo olho d'Ele, nunca perdeu um único movimento do filho. Mesmo agora tinha as mãos juntas na cara, orando por ele. E foi com os olhos encharcados despejando que o Nias comprovou, naquele instante, quem era o seu verdadeiro amor.


Caiu de joelhos raspando com as mãos desesperadas a margem do rio onde achava ter enterrado o filho. Tinha uma vontade doida de vê-lo, de saber que ainda estava ali e que, como antes, ainda cabia dentro da palma da sua mão. Só achou o papelão já desmanchado na areia e no lodo. Ficou revivendo o pai correndo pelo lodo, gritando que tinha ficado doido, antes de vislumbrar a figura da mulher ao seu lado, na cama, mais uma vez, dizendo que alguém doido não faria o que ele fez com tamanha precisão, com tamanho método. Um doido, não — jamais!


— Cê me acha doido, mãe — berrou para a escuridão —, só que gente doida não sabe bosta nenhuma!


E atirou-se no rio, atraindo os papos-amarelos para dentro do ataúde aquoso que também tinha escolhido para si.

 

Baseado no conto de Edgar Allan Poe, "O coração delator". Escrito em 2023.


Julian de Sousa é acadêmico da 5ª fase de jornalismo na Unemat tangaraense.


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